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“Nós matemáticos temos muitas formas de contribuir com soluções para conviver com a Covid-19, mas faltam dados para isso”, aponta César Castilho.

Professor de Matemática da UFPE e estudioso da Covid-19, destaca papel da ciência no combate à pandemia no Brasil, mas pede maior coordenação por parte do Governo Federal.

“Nós matemáticos temos muitas formas de contribuir com soluções para conviver com a Covid-19, mas faltam dados para isso”, aponta César Castilho.

Professor de Matemática da UFPE e estudioso da Covid-19, destaca papel da ciência no combate à pandemia no Brasil, mas pede maior coordenação por parte do Governo Federal.

 

Projeto Covid-19 e a Matemática das Epidemias - Fazendo a Ponte entre Ciência e Sociedade

 

Síntese: Camila Sousa e Júlia Lyra

Coordenação: Felipe Wergete Cruz

 

Nesta semana, o projeto de extensão Covid-19 e a Matemática das Epidemias traz uma entrevista com o Professor Associado 1 do Departamento de Matemática da UFPE, César Castilho. O docente, que há anos vem estudando os modelos de transmissão e circulação da Dengue no estado de Pernambuco, também se debruçou sobre as particularidades da Covid-19 com sua equipe de pesquisa. Mas, mesmo contando com toda a expertise na área e com o próprio potencial dos modelos matemáticos para prever os padrões de comportamento do vírus, César atesta que a falta de dados precisos tem sido uma grande barreira em seu trabalho e de tantos outros epidemiologistas.

 

[OBSERVATÓRIO] - César, você tem estudos na área da dengue, doença que ainda nos assola - sobretudo o estado de Pernambuco -, mas sem tanta intensidade como antes. A Covid-19, por outro lado, segue fazendo várias vítimas ao redor do Brasil, apesar do país contabilizar números menores de novas vítimas e mortes, nos últimos meses. Quais as diferenças e semelhanças entre a transmissão do novo coronavírus e a dengue?

                                                     

César Castilho (C.C) - Em relação às diferenças entre a dengue e o coronavírus, é importante ressaltar que a dengue é transmitida por vetores, ao passo que o novo coronavírus é transmitido pelo contato direto entre as pessoas. Então, nesse sentido a dengue é mais difícil de ser eliminada, apesar do novo coronavírus ter um padrão de transmissão semelhante à dengue. A questão da dengue estar fazendo menos danos recentemente é porque a doença obedece uma questão sazonal, que é a transmissão natural de qualquer doença, ela ir e voltar com picos epidêmicos.

 

[OBSV] Do ponto de vista matemático, seguindo os seus estudos com estudantes de doutorado no Departamento de Matemática da UFPE, é possível determinar um padrão de modelagem para a circulação e transmissão da Covid-19?

 

[C.C] - Existe sim, um padrão de modelagem para a Covid-19 e ele é muito semelhante ao de uma gripe. O que nós não esperávamos é que fosse uma doença tão contagiosa e esse é o principal problema do coronavírus. A SARS [Síndrome Respiratória Aguda Grave], que atingiu a gente em volta de 2004, 2005,  tem uma taxa de mortalidade maior. No caso do coronavírus, ele tem uma taxa de mortalidade menor e um tempo de incubação muito alto. Acredita-se que ele fique 14 dias com a pessoa portando esse vírus. Isso é muito tempo para uma doença de contato direto. Então ele faz com que grande parte da população seja contaminada.

 

[OBSV] - Falando especificamente de Pernambuco, quais foram as nuances que você pôde observar nas fases de proliferação do vírus no estado? Acredita que podemos chegar a uma imunidade de rebanho?

 

[C.C] - É uma questão muito difícil de ser determinada. Eu vou falar um pouco da dinâmica da doença infectocontagiosa. Assumindo, claro, que as pessoas fiquem imunes depois de pegarem a Covid-19. O que é essa imunidade de rebanho? Vamos pegar, por exemplo, uma doença dita infantil: o sarampo. O sarampo foi uma doença responsável por dizimar grande parte da população indígena do Brasil.

 

Você pega uma população completamente imune, a varíola, por exemplo, e infecta algumas pessoas com varíola. Então, todas as pessoas vão se infectar. Depois de um tempo, você tem basicamente 80% das pessoas infectadas. Quem sobreviver vai ficar na população, além dos 10%, 20% que não se infectaram. E aí chega um ponto que tem tanta gente infectada, tanta gente imune, que a doença não se espalha mais.

 

A pessoa pega a doença e não tem mais para quem passar. Ou se vai ter contato com a pessoa que já teve a doença ou está imune, ou com a pessoa que tem a doença. Então, dificilmente vai se entrar em contato com alguém suscetível, porque o número de pessoas suscetíveis é muito pequeno. 

 

Eu não acredito que a gente esteja perto da imunidade de rebanho. A gente está eliminando essa doença não por imunidade de rebanho, mas sim porque as pessoas estão mantendo o distanciamento, usando máscaras, controlando os contatos, mas as pessoas continuam suscetíveis. Basta olhar para o que a gente está vendo agora na Espanha, Israel. A gente só vai ter certeza de que podemos ter tido imunidade de rebanho fazendo um número enorme de testes.

 

[OBSV] - Nunca a matemática se mostrou tão importante do ponto de vista concreto, como agora, na maior pandemia do século - justamente por levar para todos evidências mostradas em pesquisas em epidemiologia/modelagem, área de estudo que sempre esteve presente na sociedade, mas cujo reconhecimento ainda não era o devido. Como você percebe e avalia este cenário?

 

[C.C] - Eu acho que o que a gente e toda a população percebe de forma muito clara é a questão dos dados. A gente tem tido uma dificuldade muito grande aqui no Brasil, porque basicamente o sistema de vigilância epidemiológica se mostrou muito fraco, muito deficiente. Não houve a coordenação desejada.

 

O que a SARS [Síndrome respiratória aguda grave] trouxe para gente e o surto de Ebola na África é, de certa forma, alertar para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e para todos os países a fragilidade do nosso sistema de vigilância epidemiológica. Nós estamos entrando em contato com um patógeno que ainda não temos vacina. Não temos nenhuma forma de controle sobre ele, medicamento ou antivirais eficientes, então, só nos resta o método da epidemiologia clássica: a quarentena, vigilância epidemiológica, distanciamento social.

 

Isso tem que ser feito de uma forma muito clara, consciente, com muita informação para a população, envolvendo vários mecanismos, autoridades de todos os níveis, municipal, estadual e federal. Tem que ter uma coordenação forte para isso e dados muito claros e confiáveis para que a comunidade passe a confiar na vigilância epidemiológica e a seguir as regras dessas vigilância.

 

Faltam ainda, para os matemáticos, estatísticos que trabalham com isso e mesmo os epidemiologistas e médicos, dados em que se possa confiar e um sistema de coleta de dados rápido. A gente precisa ter de fato um sistema muito eficiente no sentido da notificação. Eu preciso saber quantos casos teve ontem, antes de ontem, três dias atrás. E na verdade a gente vê estados que estão ainda contabilizando casos de dois meses atrás, cartório e sistemas de coleta fechados em dia de sábado, enfim, o número de mortes e casos nós não temos noção.

 

A gente recebe esses dados com muito atraso e, o que é pior, com muita desconfiança, visto a politização que se deu em relação à coleta desses dados e à doença. Essa politização é normal, digamos assim, não vai se ter um surto epidêmico na história da humanidade em que isso não aconteça. O que é importante é que se crie mecanismos de contabilização, vigilância, que estejam imunes a essa politização.

 

Ao invés de se dar mais independência aos canais competentes nessa aferição e vigilância sanitária no Brasil, nós vimos o contrário. Nós vimos uma desqualificação, um descredenciamento público desses canais. Isso é muito sério, dificulta demais os matemáticos na criação de modelos. Os modelos matemáticos têm uma capacidade de previsão muito razoável, essa capacidade é maior quanto menor for o dado, ou seja, nós somos muito capazes de predizer o que vai acontecer daqui a dois, cinco, 10 dias, mas somos menos capazes de predizer o que vai acontecer daqui a um mês ou dois.

 

Nós temos muita informação e muita forma de contribuir, por exemplo, estratégias de como sair da quarentena, de como voltar às aulas, ao trabalho, que tipo de trabalho, como contabilizar e prever o impacto disso no surto epidêmico. Agora, para fazer isso, nós precisamos desses dados que, infelizmente, não vêm sendo coletados de forma satisfatória. Isso é unânime por toda a comunidade acadêmica no Brasil, eu acredito.

Data da última modificação: 10/10/2020, 18:42