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Epidemia de peste bubônica em Exu atingiu população pobre e caiu no esquecimento
Estudo de Cláudia Parente foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UFPE
Em 1935, o município de Exu, localizado na divisa dos Estados de Pernambuco e do Ceará, passou por uma epidemia de peste bubônica que afetou fortemente os costumes e o cotidiano, deixando marcas na cultura local até os dias atuais. No entanto, os cerca de 30 mil habitantes atuais da cidade, sobretudo os mais jovens, pouco ou nada sabem sobre esse episódio da história local. Na dissertação “Memórias de um ano da peste: uma reconstituição da epidemia que assolou Exu em 1935”, a pesquisadora Cláudia Maria Cardoso Parente, natural do município, busca reconstruir o acontecido e entender as causas que levaram esse momento tão triste e marcante a ser quase que totalmente esquecido.
Em seu trabalho, que foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UFPE e contou com a orientação do professor Carlos Alberto Cunha Miranda, a autora entrevistou habitantes centenários da região durante o ano de 2018, além de consultar documentos oficiais e jornais da época para reconstituir a maior epidemia de peste do Sertão pernambucano.
CHEGADA | Em 1919, Exu registrou seu primeiro caso de peste bubônica. A pesquisadora comenta que, após ter sido controlada no Recife, a doença rumou para o interior através da linha férrea. “Onde o trem não chegava, a moléstia prosseguia no lombo de muares, que transportavam mercadorias infestadas de ratos e pulgas contaminados até as cidades e povoados”, escreve ela em sua dissertação. Entre os anos de 1925 e 1965, a cidade registrou diversos episódios de surto da doença, mas três eventos patológicos se destacam: as epidemias de 1925, 1935 – a de maior magnitude e transcendência, alvo do estudo – e a de 1938. O surto de 1935 tornou Exu epicentro da doença, de onde ela se irradiou para outros municípios de Pernambuco, Ceará e Piauí.
Mas por que uma epidemia tão grande como a de 1935 está quase que completamente esquecida? A autora aponta que a principal causa desse quase apagamento está no perfil socioeconômico das vítimas. “A doença não atingiu a zona urbana – localizada a cerca de 680 quilômetros de distância da capital, tendo com ligação uma rodovia quase totalmente de terra batida –, mas o distrito de Tabocas encravado no sopé da Chapada do Araripe, ainda mais isolado e habitado por famílias muito pobres”, explica. Essas pessoas, desprovidas de representatividade para causar impacto no cenário de poder local, se constituíram em alvo preferencial da doença, principalmente pelas condições precárias de moradia e dos costumes.
A autora aponta que esse resultado evidencia um ponto que outras pesquisas sobre epidemias de peste bubônica já apontavam: caráter seletivo da peste, indicando que a doença atinge, principalmente, os mais pobres. Essa seletividade pode ser explicada pela falta de postos de saúde e as condições de vida muito precárias. “Para completar, seus habitantes carregavam o estigma de não ter instrução nem hábitos recomendáveis de higiene”, explica.
No caso da população de Exu, essa definição encontra ressonância no comentário feito pelo bispo dom Idílio Soares, em artigo enviado ao jornal Diário da Manhã, no intuito de elogiar o trabalho dos profissionais de saúde, enviados à cidade para debelar a epidemia de peste. No texto, o religioso atribui a propagação da enfermidade ao problema de a população atingida “infelizmente desconhecer, em grande parte, os princípios rudimentares da higiene”. “Assim, desprezado pelo poder público, que não garante o abastecimento regular de água, esgotamento sanitário nem acesso ao sistema de saúde pública às classes mais baixas, o indivíduo carente ainda carrega em si o estigma de ser o causador da própria desgraça”, aponta Cláudia Parente.
DOCUMENTAÇÃO | A autora aponta que o fato das principais vítimas da peste serem sertanejos pobres resulta numa escassa documentação oficial a respeito deste episódio da epidemia. Entre a documentação está um registro importante, do governador Carlos de Lima Cavalcanti em sessão na Assembleia Legislativa. Existem parcos registros em boletins de órgãos públicos de saúde e breves menções em trabalhos de sanitaristas e epidemiologistas, que não abordam a epidemia do ponto de vista sociocultural.
Sem hospitais ou postos de saúde que pudessem receber, tratar e também documentar os casos de peste no distrito de Tabocas, muitos doentes ficavam isolados em casa à mercê de práticas e saberes antigos e da fé no divino. Quando vinham a óbito, o medo de que a doença ainda se propagasse impedia que muitas famílias realizassem velórios abertos e enterros no cemitério da cidade. Com isso, restava à família sepultar seus entes queridos em covas improvisadas nos quintais ou até mesmo na Serra do Araripe.
DISPUTA POLÍTICA DA PESTE | Na falta de documentações oficiais mais contundentes, Cláudia Parente encontrou o que há de mais incisivo e revelador sobre a doença – além dos testemunhos orais – nos jornais da época, que acabaram por ser utilizados como fonte para sua pesquisa. Neles, a autora conseguiu enxergar um uso político da epidemia de peste em Exu e outras cidades do Sertão de Pernambuco. De um lado encontrava-se o Diário da Manhã, pertencente ao então governador Carlos de Lima Cavalcanti e sua família; e do outro, estava o Diario de Pernambuco, que fazia oposição ao governo.
A consulta a esses dois jornais revelou como a conduta do poder público diante das denúncias e da confirmação da epidemia era apresentada ao público. As narrativas, seguindo linhas editoriais distintas, evidenciaram uma intensa disputa de poder, que orienta o discurso de cada um e mostra que a epidemia teve uma dimensão política. Na dissertação, a pesquisadora, que é jornalista de formação, aponta que o Diário da Manhã trabalhou intensamente na construção de um discurso que destacava a operosidade da gestão, sua dedicação incansável ao combate à peste, com a mobilização prestimosa de recursos materiais e humanos para atender o Sertão castigado pela epidemia. Já o Diario de Pernambuco, que fazia oposição clara ao governo, denunciava a ocorrência de surtos no Sertão, trazia relatos de testemunhas da provação à qual era submetido o povo da região e denunciava o desmonte do sistema público de saúde, que teria ocorrido a partir da nomeação do governador Carlos de Lima Cavalcanti.
Contudo, no ano seguinte ao da epidemia na cidade, o Diario da Manhã, ao informar sobre o surgimento de casos da doença no município do Crato (CE), vizinho a Exu, lembra que, meses antes, “o terrível mal” dizimou centenas de vidas na Serra do Araripe, no limite do Ceará com Pernambuco, omitindo a localização exata da epidemia, que já tinha sido amplamente divulgada. Para a autora, essa notícia imprecisa, publicada por um periódico considerado pelos opositores como porta-voz do governo Carlos de Lima Cavalcanti, aponta na direção de um sutil processo de acobertamento, principalmente quando a análise de conteúdo dos dois principais jornais do Estado evidencia que a epidemia de peste se tornou epicentro de uma disputa política e havia muitos questionamentos sobre a atuação do governo do Estado em seu enfrentamento. Depois dessa nota, a peste não seria mais abordada no periódico.
Também em 1936, o Diario de Pernambuco, ao falar sobre a epidemia de peste em Surubim, relembra a tragédia de Triunfo no fim da década de 1920. Contudo, o jornal não faz nenhuma menção ao ocorrido em Exu no ano anterior. Com isso, esse triste episódio da história do município foi sendo esquecido nos veículos oficiais e nas memórias de muitos dos seus habitantes.
Apesar de quase esquecida, a epidemia de peste bubônica deixou algumas marcas na cultura local. A principal delas é a celebração de São Sebastião como padroeiro da comunidade de Tabocas, a mais atingida pela peste. Na falta de assistência médica, os habitantes da localidade voltaram-se para o divino, apelando pelo auxílio do santo “patrono da peste” com a promessa de que se a peste fosse embora trocariam de padroeiro. No entanto, ao meio do caminho, os habitantes, talvez por medo do castigo que poderiam sofrer de Nossa Senhora da Assunção, padroeira da comunidade, decidiram por adotar ambos os santos como seus protetores.
Programa de Pós-Graduação em História da UFPE
(81) 2126.8292
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Cláudia Maria Cardoso Parente
claudiaprocula@gmail.com