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“É um avanço que a transexualidade de alguém não seja vista como algo impeditivo para essa pessoa ter acesso a cargos de direção”, afirma a professora Antonella Galindo

A partir de abril, Antonella dividirá a missão de liderar a FDR com o professor Torquato Castro Júnior, eleito diretor na mesma chapa

Por Ana Célia de Sá

A professora Antonella Galindo, do curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), carrega em seu nome a força de uma libertação pessoal, baseada na sua expressão de gênero. Mulher trans, a docente traz em sua trajetória não apenas conquistas pessoais, mas também profissionais, que a gabaritam ao seu posto atual. Ela é a primeira pessoa trans a compor a diretoria da Faculdade de Direito do Recife (FDR)/Centro de Ciências Jurídicas (CCJ), ocupando o cargo de vice-diretora na chapa eleita, no dia 13 de fevereiro, com vitória nos três segmentos (docentes, técnicos administrativos e estudantes), para o quadriênio 2023-2027. A partir de abril, ela dividirá a missão de liderar a FDR com o professor Torquato Castro Júnior, eleito diretor na mesma chapa.

Fotos: Bernardo Sampaio

Antonella Galindo é docente da UFPE desde 2006

Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), mestra e doutora em Direito pela UFPE, a professora Antonella dedica-se particularmente ao Direito Constitucional, dividindo-se entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão na graduação e na pós-graduação há 25 anos, sendo os últimos 16 anos na UFPE, onde também é a primeira professora trans da instituição. O conhecimento adquirido ao longo da carreira tem contribuído na formação de profissionais e pesquisadores, além de ser um aliado na busca por uma sociedade mais justa, igualitária e antiLGBTfóbica.

Um novo desafio se coloca, agora no papel de gestora. Na diretoria da FDR, a docente pretende aproximar o universo jurídico dos públicos interno e externo à UFPE, numa reconexão com a sociedade por meio da democratização da ciência, da abertura ao diálogo e do estímulo à extensão universitária. A evolução do curso de Direito e a valorização das pessoas que compõem a FDR também fazem parte do plano de trabalho proposto pela chapa eleita. Ciente da relevância do cargo que ocupará em breve, a professora Antonella quer usar sua voz para desenvolver ainda mais a educação superior e, junto a isso, impulsionar a causa das minorias sociais, como explicou à Assessoria de Comunicação (Ascom) da UFPE em entrevista concedida no prédio da Reitoria, no Campus Recife.

A senhora é a primeira mulher trans a fazer parte da diretoria da Faculdade de Direito do Recife, como vice-diretora, nos 195 anos de história dessa instituição. De que maneira enxerga esse marco?
É um fato que tem tido muita divulgação e, claro, todas elas chamando a atenção para a minha transexualidade. Alguns comentários dizem que o que importa é ser competente e que não precisava destacar isso. Só que diretores e diretoras competentes nós temos muitos no Brasil, e obviamente eu não excluo minha competência. Tanto é que eu sou professora da UFPE há 16 anos, tenho três livros publicados, tenho dezenas, quiçá esteja atingindo a centena, de artigos publicados, fui vice-coordenadora de graduação e subchefe de departamento. Eu tenho um currículo que me credencia a estar onde eu estou. Mas o fato de eu ser uma mulher trans chama a atenção porque é um espaço que, até então, era muito negado à comunidade LGBT de um modo geral e, mais particularmente, às pessoas trans. Então, é algo muito significativo. O destaque que se faz à minha condição eu não vejo como uma coisa negativa. Claro que a competência é o fator principal, eu não estou lá só porque eu sou uma pessoa trans e eu sempre falava isso nas salas de aula. Agora, o fato de ser uma pessoa trans é importante que seja ressaltado. É um avanço que a transexualidade de alguém não seja vista como algo impeditivo para essa pessoa ter acesso a cargos de direção, a concursos, seja o que for. E, nesse sentido, eu fico muito feliz de ser pioneira nisso e de ser representante da comunidade LGBT e, mais particularmente, das mulheres e homens trans nesse espaço.

Pretende usar sua visibilidade a favor da causa LGBTQIA+?
Sem dúvida. Eu tenho, de certo modo, um dever moral e social com a comunidade LGBT nesse sentido e jamais deixarei de ter compromisso com essa causa. Porém, obviamente, eu não sou monotemática. Pretendo, junto com o professor Torquato Júnior, fazer uma gestão de altíssimo nível, de alta qualidade. Acho muito positivo que nós, primeiro, possamos fazer um bom trabalho. Isso, por si só, traz uma boa visibilidade à causa no sentido de que você tem uma pessoa LGBT, uma pessoa trans, ocupando um determinado espaço e desempenhando muito bem o seu trabalho, sendo uma profissional que tem feito a diferença ali naquele espaço para a comunidade em geral, não só para as pessoas LGBT. Mas, sem dúvida alguma, uma parte dos meus esforços vai se voltar para os direitos da comunidade LGBT, já que os Direitos Humanos são também algo que eu pesquiso. E tudo que eu puder fazer no sentido de aprimoramento e de luta por esses direitos da comunidade LGBT, eu farei.

Quais são os principais pontos a serem enfocados durante a sua gestão, junto com o professor Torquato Castro Júnior?
Nós temos uma percepção de que a Faculdade precisa ser do século XXI. Esse olhar de futuro é o que nos anima. E nos anima, dentre outras coisas, de um ponto de vista mais prático de, primeiramente, ouvir mais a comunidade. A nossa ideia é de uma gestão muito horizontal no sentido de escutar a comunidade, de ver as reais necessidades da comunidade a partir dela própria. Vamos, claro, tomar decisões em muitos momentos, mas essas decisões vão ser calcadas nessa escuta ativa. Temos algumas ideias no que diz respeito à administração. Pensamos, por exemplo, que a prática jurídica precisa ser fortalecida. Há também questões como uma própria manutenção da biblioteca e demandas de apoio a equipes da Faculdade para competições nacionais e internacionais. É uma gestão que pretende ser democrática e inclusiva em todos os aspectos, à comunidade LGBT, às pessoas com deficiência, às pessoas negras, aos cotistas, enfim, uma Faculdade que deve ser diversa. Então, a inclusão e a diversidade também fazem inevitavelmente parte da nossa ideia de gestão. Uma gestão democrática, participativa e competente do ponto de vista administrativo. Vamos usar a expertise do nosso corpo de servidores e servidoras do ponto de vista dos serviços a serem prestados pela Faculdade. E também buscar articulação para ingresso de mais recursos no CCJ. Nós temos a ideia de uma relação mais estreita com a Reitoria; buscarmos também recursos de emendas parlamentares e de editais.

O plano de trabalho da sua chapa fala também na produção e divulgação da ciência do Direito. De que forma isso pode acontecer?
No nosso caso específico do curso de Direito, vamos ter um fator muito propício a uma democratização do conhecimento jurídico, principalmente, com a chamada curricularização da extensão. E é um tipo de demanda muito importante para o nosso tripé universitário, sobretudo, para que a Faculdade possa estar mais inserida na comunidade. Do ponto de vista da produção em si do conhecimento, nós temos uma boa produção, se olharmos os números da pesquisa no Centro de Ciências Jurídicas, mas falta uma inserção maior do curso de Direito no seu entorno. Então, essa curricularização da extensão é positiva. A Faculdade precisa ser um catalisador para isso, precisa estimular e levar esse conhecimento. Afinal, é uma faculdade que se sustenta por recursos públicos pagos por todos nós. A nossa gestão vai ter realmente um olhar mais cuidadoso para esse fenômeno e para, através da prática jurídica, através da extensão universitária, levar esse conhecimento à sociedade.

O que a UFPE, em especial a Faculdade de Direito do Recife, representa para a senhora?
É minha segunda casa. E agora vai ser mais ainda porque vou passar mais tempo lá [na FDR] na questão da gestão. É uma faculdade que tem, digamos assim, uma simbiose entre a vanguarda e a tradição. O meu sentimento pessoal em relação à Faculdade sempre foi um sentimento de pertencimento. Eu lembro que, quando eu iniciei o mestrado na FDR, já que eu não fui aluna de graduação lá, e fui também professora substituta, eu tinha um sonho de que um dia seria professora efetiva dali. Para mim, ser professora daquela casa, onde lecionaram tantos professores e professoras ilustres e onde também houve tantos alunos e alunas ilustres, seria uma honra incomensurável. Então, sempre senti uma relação de muita proximidade. Eu considero que eu tenho uma relação afetuosa, afetiva com a UFPE de um modo geral. Gosto muito daqui do Campus Recife, mas, sem dúvida alguma, há uma relação também afetiva com o próprio prédio da FDR, com as pessoas dali. Gosto muito de conviver, de circular pelos corredores da Faculdade, de conversar com as pessoas e, claro, de dar aulas, de fazer minhas pesquisas, de estar presente de alguma forma. É um trabalho que me exige muito, mas que tenho também muito carinho e muita felicidade em fazer.

Quais são suas principais áreas de pesquisa?
Sou cíclica em termos de pesquisa. Eu já pesquisei questões de natureza mais interpretativa, de Hermenêutica Jurídica. Durante um período, pesquisei a relação entre Direito Constitucional e Direito Internacional, comunidades econômicas e organizações internacionais de Direitos Humanos. Mas, nos últimos anos, eu basicamente me dedico a dois temas prioritários de pesquisa. Um deles é a chamada Justiça de Transição, que é a discussão sobre transições à democracia, sobre autoritarismo e democracia, Direitos Humanos. E, de outro lado, e é um tema que agora ganha mais importância pela externalização da minha condição de mulher trans, está o Direito Antidiscriminatório, que é uma espécie de sub-ramo do Direito Constitucional, embora envolva também outros ramos do Direito, mas que envolve o estudo das normas jurídicas que dizem respeito à antidiscriminação, ao combate às discriminações de natureza pejorativa. E nisso a gente envolve temas dos mais diversos, tanto direitos LGBT, como também direitos referentes ao combate ao racismo, à misoginia, à LGBTfobia, ao capacitismo, à promoção da dignidade das pessoas com deficiência. Enfim, todos esses segmentos de pessoas vulnerabilizadas socialmente.

Sua formação acadêmica é na área jurídica, da graduação à pós-graduação. Como o Direito tem lhe ajudado a compreender o mundo social e torná-lo um ambiente mais justo e igualitário para os diferentes grupos humanos que compõem a sociedade?
O Direito sempre me ajudou no sentido de compreender ou tentar compreender os meios pelos quais nós podemos fazer a sociedade mais justa. Muito embora o Direito tenha uma tendência a ser conservador, do ponto de vista de conservar situações, ele também pode ser transformador, na medida em que teria a justiça como seu ideal último. Mas eu diria que o Direito, quanto à sua aplicação ou à forma que muitas pessoas o liam, não foi suficiente para mim. Para mim, sempre o conhecimento extrajurídico, metajurídico, foi muito importante. A Ciência Política, a Filosofia, a Hermenêutica, a História, a Literatura, as Artes, eu sempre tive uma fascinação também por esses conhecimentos. São leituras que abriram muito minha cabeça para o mundo e que me permitem uma interlocução com pessoas de outros segmentos. Tudo isso ajuda a construir uma visão mais humana inclusive do Direito, mas o Direito ajuda no sentido de que é através dele, muitas vezes, que muitas conquistas se concretizam e se estabilizam. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal foi quem garantiu o reconhecimento às uniões estáveis homoafetivas e aos casamentos homoafetivos a partir de 2013. Foi o Judiciário que garantiu a nós, pessoas trans, que pudéssemos alterar nosso nome independentemente de cirurgia de redesignação genital e de ordem judicial. Enfim, o Direito também é um espaço de luta política, não no sentido partidário, e de luta por direitos.

Como a senhora se define?
Profissionalmente falando, eu sou professora da UFPE desde setembro de 2006. É a profissão que eu abracei, a que eu me dedico há mais de duas décadas. E tenho uma grande paixão por essa profissão, um grande amor pela sala de aula, pela pesquisa, por tudo que envolve a Universidade e a Faculdade de Direito. Como ser humano, eu sou uma pessoa muito dedicada ao que eu faço, às pessoas que me cercam, à família em especial. Busco ser solidária, busco ser empenhada naquilo que eu faço, nos meus objetivos, mas sou uma pessoa comum, no fim das contas. Acho que chama muito a atenção a questão da minha transexualidade, que recentemente eu revelei, coloquei-me dessa forma com o gênero com o qual eu me identifico. Mas, tirando esse aspecto específico, que é um aspecto raro, em todo o resto eu me considero uma pessoa comum, com desejos, com aspirações, com virtudes, com defeitos, enfim, no geral, uma pessoa comum.

Data da última modificação: 08/03/2023, 14:47