Informes do CCJ Informes do CCJ

Voltar

Reflexões sobre um Decreto concessivo de indulto individual. Uma hipótese de abuso de direito.

Reflexões sobre um Decreto concessivo de indulto individual. Uma hipótese de abuso de direito.

 

                                                                                         Francisco de Queiroz B. Cavalcanti[1]

 

A Constituição Federal de 1988 prevê :

Art. 84  Compete privativamente ao Presidente da República:

 

XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;

 

Tal previsão , em verdade, representa uma reprodução dos textos constitucionais anteriores, presente no período imperial e já encontrado no art. 48, parag. 6º da CF de 1891, inspirado no modelo norte americano e inglês. Sobre ela já bem lecionava CARLOS MAXIMILIANO:

 

...” nenhum governo que se respeite, perdoará por mera bondade, sentimentalismo, ou afeição. As lágrimas das mães ou as súplicas de amigos preclaros dos parentes dos criminosos não devem influir no espírito do Presidente. É  qualidade rara de homem de Estado e resistência oportuna ao pendor natural  para ações de pura magnanimidade.”[2]

                       

Já a constituição de 1934, referia-se à competência constitucional para perdoar e comutar, mediante proposta dos órgãos competentes, penas criminais.[3]

                       

Essa prerrogativa presidencial mantem-se nas constituições subsequentes, até a Carta de 1988, hoje em vigor, que estabelece:

 

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

...  ...

XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;

 

A partir dessa moldura, mas não só dela, não se olvidando os princípios que devem nortear as ações de Estado, deve-se interpretar e analisar o surpreendente DECRETO do Presidente da República, expedido em 21.04.2022 concedendo ( “indulto individual  ao deputado Daniel Lúcio da Silveira”).

 

As consideranda do citado DECRETO referem:

 

  1. Preservação de “liberdade de expressão como pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações”.

 

  1. Que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária, decorrente de “juízo integro baseado necessariamente, nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis.”

 

  1. Que” ao presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público”.

 

  1. Que a” sociedade encontra-se em legítima comoção em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião”.

 

A Constituição Federal de 1988 foi fortalecida pela inserção de uma principiologia visando reforçar pilares relevantes como da MORALIDADE e IMPESSOALIDADE, dentre outros.

 

Os pilares enunciados no DECRETO são insustentáveis face ao texto constitucional vigente, são expressão de uma nítida situação de desvio de finalidade, como se observará, com brevidade, a seguir:

 

 

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO É DIREITO FUNDAMENTAL, mas a pretensão de transformá-la em instrumento para a violação de direitos fundamentais não o é. Aqui se tem, nitidamente, a utilização de um direito fundamental como se fosse fundamento para abuso de direito. A alegação é absolutamente insustentável. Tergiversa-se sobre o sentido desse direito, para vê-lo albergar situações de inafastável ilegalidade e inconstitucionalidade.

           

O segundo fundamento ( juízo integro baseado necessariamente, nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis)  sofre do mesmo mal. Ou seja o alegado é correto, mas não se aplica ao caso. Aqui não se tem hipótese legal e sobretudo MORALMENTE CABÍVEL. Tem-se sim o mal uso de um remédio constitucional excepcional, para atender a conveniências pessoais, para atender a interesses de pessoas que são caras e em princípio, fieis, ao transitório Chefe de Governo. Aqui se tem, evidentemente, uma hipótese de DESVIO DE FINALIDADE. Não é constitucionalmente sustentável, utilizar-se de “indulto individual” para conceder verdadeiro “salvo conduto” a condutas penalmente reprováveis incontestavelmente praticadas por agente político no exercício de função relevante. Aqui tem-se uma pretensão de utilização descabida de uma previsão do art. 84 da CF/88 para agasalhar flagrante abuso e pretensão de agressão ao exercício de um Poder constitucional.

 

O Terceiro argumento é igualmente frágil. Confunde e deturpa o conceito de “interesse público”, PRETENDENDO  confundi-lo com interesse de grupo eventual e transitoriamente no Governo. Lamentável o desconhecimento do conceito de interesse público, que não se confunde com interesses de eventuais e transitórios apoiadores do governante transitório. A doutrina acerca desse princípio é unanime. Poder-se-ia aqui citar José Afonso da SILVA, Celso A. BANDEIRA DE MELLO, Humberto ÁVILA e tantos outros, mas tais citações são absolutamente despiciendas. Em não havendo desconhecimento a situação seria ainda mais grave, pois, levaria à típica caracterização de abuso, quiça de crime de responsabilidade. Observe-se que houve unanimidade dos Ministros do STF acerca da ilicitude do ato do parlamentar. Apenas um entendeu inexistir tipo penal, mas mesmo esse isolado Ministro, entendeu da ilicitude de conduta do agente político julgado.

Além disso, o conceito de INTERESSE PÚBLICO hoje assente, é princípio a ser interpretado em sintonia com os demais princípios constitucionais explícitos ( como o da impessoalidade e o da moralidade) e implícitos ( como os da razoabilidade e o da proporcionalidade). O que se fez com a expedição do citado Decreto, sem dúvida, representou grave violação própria Constituição.

O DECRETO é juridicamente melancólico, segue em linha de deturpação da Constituição, a mesma que confunde instituições públicas relevantes, como se fossem instrumentos de grupos no Poder. Tal não contribui para o necessário respeito mútuo entre os Poderes em um regime democrático.

Pode-se apresentar em brevíssimas conclusões:

  1. O Decreto não atende à moldura constitucional que deve pautar a excepcional figura do INDULTO;

 

  1. O INTERESSE PÚBLICO não ampara o texto, pois, tal não alberga a hipóteses de agressões passionais a instituições democráticas;

 

  1. Como já lembrava CARLOS MAXIMILIANO, INDULTO NÃO É INSTRUMENTO para atender a interesses daqueles que são caros aos detentores de Poder, não é instrumento para assegurar “zonas de impunidade” para a prática de atos ilícitos.

 

  1. Por outro lado a fantasiosa “legítima comoção” invocada, faticamente é algo inexistente e nem seria fundamento para o acolhimento do pretenso INDULTO.

              

 

[1] Professor titular e diretor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Doutor em Direito. Desembargador Federal aposentado.

[2]  MAXIMILIANO Pereira dos Santos, CARLOS.  Comentários à Constituição brasileira de 1891. Brasília: Senado Federal coleção história do constitucionalismo brasileiro – 2005, P.513.

[3] ARAÚJO CASTRO. A nova constituição brasileira. Rio de janeiro, Freitas Bastos, 1936, p.229.

Data da última modificação: 21/04/2022, 22:18