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Vergonha e raiva são sentimentos comuns entre os usuários de crack

Para pesquisador, "o sentido que parece orientar a vida desses sujeitos é o desejo de possuir uma identidade visível; de possuir um status social presente"

Por Gabriela Lázaro                                                                                       

Problema de ordem pública, o consumo do crack no Brasil é tema da tese de doutorado “Pobreza e identidades humilhadas: Processos de significação relacionados ao uso de crack” , que buscou analisar os processos de significação relacionados ao uso da substância a partir de dimensões micro e macrossociais. Com o estudo, o pesquisador Manoel de Lima Acioli Neto constatou que, por conta do uso da droga, “há uma indiferenciação entre o sujeito que se enquadra na categoria de humano e não humano” e que “o crack é um dos objetos sociais com função de regular a população brasileira, através da construção da imagem de uma figura e um objeto ameaçador: a droga e o usuário”.
 
Na tese, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE e orientada pela professora Maria de Fátima de Souza Santos, o pesquisador observou que “a vergonha e a humilhação de ser pobre parece ser a marcação que prevalece na identidade do sujeito que usa o crack”. Para a pesquisa, foram analisadas a produção midiática sobre o campo das drogas e a legislação sobre drogas vigente no Brasil. A parte de campo do estudo foi realizada com 15 usuários de crack, com idade entre 18 e 45 anos; e a partir das respostas destes usuários, foi feita uma análise de como a pobreza e seus preconceitos são representados.

O autor concluiu, a partir da observação de 1.545 matérias publicadas em diversos jornais que, desde 1920, “o discurso das drogas se conforma em torno de consolidação de um dado objeto como ameaça social”. No caso do crack, são destacados dois pontos: a representação da pobreza como fator de influência no uso de crack e as representações femininas das usuárias - “mostradas sempre como garotas de programa que se prostituem para sustentar o vício ou mulheres que se desvirtuam da sua função de mãe por conta do uso de crack”. Essa análise buscou observar como objetos distintos - álcool, maconha e crack - foram representados na mídia e geraram polêmica social nas décadas em que surgiram no Brasil.

Na análise da legislação, o objetivo foi entender como as leis que falam sobre drogas representam o usuário e as substâncias psicoativas. Para isso, foram analisados 13 documentos que compõem a legislação sobre drogas no Brasil. Nesta análise, nota-se a caracterização do usuário como “sujeito excluído da sociedade e que precisa de intervenções para que possa se reinserir” e a preocupação no combate às drogas e a interdição ao consumo. “O modo como a droga é representada na legislação tem implicações na construção da emergência de uma figura de alteridade marcadamente repulsiva”, afirma o autor. Para ele, “a legislação brasileira sobre drogas, com seu teor repressivo e com a deslegitimação do uso de drogas como uma prática cultural, termina por construir mecanismos de exclusão às classes socioeconômicas mais desfavorecidas”. 

DEPOIMENTOS | Já no grupo focal, última etapa da pesquisa, o estudo foi realizado com usuários de crack assistidos pelo Programa de Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus Familiares (Programa Atitude), coordenado pela Secretaria Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Estado de Pernambuco (SEDSDH) e que oferece serviços criados a partir do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas. Na conversa com os grupos, percebe-se como a “favela e a humilhação de ser pobre” juntamente com “a criminalidade como inserção social” acabam influenciando no consumo de drogas.

Foi a partir do contato com os grupos que o autor identificou o sentimento de vergonha apresentado por Lucas* em um momento da conversa: “Eu me sinto... com vergonha, não vou mentir. Com vergonha. Tanto é que nem dentro de casa eu entro, ainda sou convidado pra entrar, mas eu não entro, com vergonha!”. O sentimento da raiva por ser estigmatizado é apresentado por Alberto* na sua fala. “A gente deixa o que o povo fala virar verdade; a gente deixa, porque o povo fala o quê? Quem vem da favela é ladrão; e às vezes a gente vai na pilha, e faz mesmo. Ah, fulano tá falando? Apois eu vou fazer”, diz. 

Além da vergonha e da raiva, outro entrevistado, Roberto* mostra que, no seu ponto de vista, “muitas pessoas que moram em favela adquirem as coisas através da droga. Porque não tem um estudo, não tem um trabalho... Não tem, como é que é? O que movimenta a favela é droga. É a desgraça do outro, falando bem... É a desgraça do outro, do próximo, no caso. O próximo, o que tá consumindo ela”.

O pesquisador também observou como todos os usuários buscam negar a pobreza e não se reconhecem como “pobres”. Marcos*, por exemplo, declara que, para ele, pobreza é miséria. “Fome, doença... Ser pobre é a pessoa não ter nada, não ter nem perspectiva de nada, não tá nem aí pra nada... Pra mim, pobreza é isso aí. Eu não me considero pobre não. (...) Eu nasci na favela, mas eu nasci nas condições que me limitava ali, então eu tinha aquilo só que eu não podia me expandir. Então como eu me expandi foi dentro do... das drogas, do crime... Então, pra mim, eu não sou pobre, eu simplesmente fui humilde por nascer numa favela”, afirma.

Para Manoel, ficou claro que “o sentido que parece orientar a vida desses sujeitos é esse desejo de possuir uma identidade visível. De possuir um status social presente”. Os usuários já se enxergam como uma ameaça, por serem de favelas e sofrerem desde novos com a humilhação, com a participação em ações criminosas, “apenas se institui enquanto uma forma de visibilidade”, sintetiza o pesquisador.

*Todos os nomes dos usuários apresentados são fictícios

Mais informações

Programa de Pós-Graduação em Psicologia
https://www.ufpe.br/pospsicologia
(81) 2126.8271

Manoel de Lima Acioli Neto
mdlacioli@hotmail.com

 

Data da última modificação: 03/04/2019, 15:45