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Desvio de função e fraude eleitoral já eram práticas de repartição pública no Brasil em 1752

Segundo o autor, os registros mostram como foram leves as rupturas nos nossos modelos de gestão política e administrativa; práticas remotas continuam a se repetir no nosso cotidiano, amparadas por autoridades, leis, códigos e regimentos

Por Renata Reynaldo

Uma repartição pública, cuja atribuição era controlar certa atividade comercial, desvirtua sua função e, além de passar a atender justamente aos interesses de quem deveria fiscalizar, promove eleição fraudulenta e elege um inspetor, de sobrenome Cunha, cuja gestão causa danos ao comércio. Embora esses fatos se ajustem bem ao atual contexto político do Brasil, os documentos oficiais que confirmam o enredo são do período de 1752 a 1777, quando funcionou a Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco, implantada na capitania por iniciativa do Marquês de Pombal.

Segundo o mestre em História Paulo Fillipy de Souza Conti, que se debruçou sobre artigos científicos, dissertações, teses e, sobretudo, fontes manuscritas e impressas para produzir a dissertação A Casa das Qualidades, pesos e preços: a mesa da inspeção do tabaco e açúcar de Pernambuco (1752-1777), a estreita associação entre fatos ocorridos em tempos tão distantes revela uma faceta perversa na historia do Brasil. "Registros como esses nos mostram como foram leves as rupturas nos nossos modelos de gestão política e administrativa; práticas remotas continuam a se repetir no nosso cotidiano e, assim como no passado, muitas delas amparadas por autoridades, leis, códigos e regimentos", afirma.

No trabalho acadêmico, que foi realizado sob a orientação da professora Virgínia Maria Almoêdo de Assis e defendido no Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, o autor também revela que, embora a Mesa de Inspeção tenha sido criada para controlar peso, preço e qualidade de ambos os gêneros, terminou por direcionar suas atribuições predominantemente para o comércio do açúcar devido à baixa produção do tabaco na região. "Com função multifacetada, a instituição ora esteve mais alinhada ao que dela era esperado no Reino, ora esteve mais próxima aos interesses locais, por mais contraditório que possa parecer", acrescenta.

RECEPÇÃO | Logo após sua instalação em Pernambuco, a Mesa de Inspeção foi duramente criticada pelos locais. Segundo a dissertação revela, com base em uma carta enviada pelos oficiais da Câmara de Olinda ao Reino, em 3 de julho de 1752, "os senhores de engenho e lavradores de açúcar afirmaram que os preços impostos pela Mesa não atendiam às suas necessidades, e que o modelo traria prejuízo não apenas para Pernambuco – onde as contas, nas suas palavras, já se afundavam pelo aumento dos açúcares e engenhos". Indignados, os produtores ressaltavam que, fora da dita Praça, a maioria da população dependia dos engenhos para sobreviver, pois exercia os ofícios de oleiros, pedreiros, caldeireiros e banqueiros. “Havia um grupo de indivíduos que gravitava em torno das fábricas de açúcar e dependia diretamente do “fogo vivo” para sobreviver”, afirma o historiador.

Também à luz dessas missivas transatlânticas, foi possível identificar a existência de rixa entre os senhores de engenho pernambucanos e os baianos. E o motivo foi o decreto de instituição da Mesa de Inspeção, de 27 de janeiro de 1751, que recomendava “aperfeiçoarem-se os açúcares do Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão, de sorte que venham a ter proporção na bondade com os açúcares da Bahia”. Encarada como uma provocação descabida, a assertiva provocou a resposta dos subordinados do Recife: “o açúcar baiano não era superior ao pernambucano, até mesmo por ser o primeiro mais 'trigueiro' que o pernambucano, que era mais alvo”.

Ainda na linha contra a intervenção do Estado-Reino, os fabricantes reafirmavam, segundo apurou Paulo Conti, a incapacidade dos senhores de engenho em manter as suas propriedades moentes dado o aumento dos preços, e que a “morte” dessas fábricas era real, tornar-se-iam a maioria dos engenhos de fogo morto. Na dissertação consta que, “antes do estabelecimento da Mesa, os preços eram fixados de acordo com propostas de um representante dos lavradores, outro dos senhores e Câmara, e, não havendo resolução, o assunto cairia nas mãos do governador”. Esse sistema em que uma espécie de junta se reunia para definir o preço do açúcar era chamado de louvados.

MUDANÇA | Em 1759, o tom quanto ao papel exercido pela Mesa da Inspeção na capitania já era completamente diferente. Segundo Conti, “ao favorecer uma parcela importante da população, em termos econômicos e políticos, conseguiu a agência mudar a opinião que os produtores e comerciantes tinham dela”. No entender do autor da pesquisa, a animosidade terminou quando a instituição “em diversos momentos tomou defesa dos interesses locais, colocando-se, inclusive, contra a Companhia de Comércio, agência monopolista que sempre pareceu agir em favor dos interesses da Coroa”, e passou a encampar algumas demandas locais, como a regulação do valor dos escravos. “A Mesa tornou-se plataforma para o exercício de poder na capitania e, a partir de então, os locais encontraram formas de poder de controle e barganha no próprio exercício que lhes cabia dentro da Mesa da Inspeção”, diz Conti.

E era justamente ambicionando esse poder que expoentes da política, da oligarquia e do comércio local se digladiavam ou se compunham. Segundo o historiador, juntavam-se dentro do mesmo órgão os membros que representavam a tradição da terra, por seu “sangue e fazendas”, e aqueles que concentravam os maiores montantes de dinheiro no período. "E, como sabemos até hoje, quando tradição e dinheiro se unem em torno do mesmo propósito, o que não falta é força e apoio político", destaca.

Como se tornou comum, durante a existência da Mesa da Inspeção de Pernambuco, o acesso aos cargos foi passível de conflitos. Para Conti, "os documentos atestam artimanhas usadas pelos senhores de engenho e comerciantes, para dar ares de normalidade a eleições irregulares, durante dois processos de votação para o cargo de inspetor do açúcar". "Irregularidades essas", ressalta, "que envolveram altos membros da sociedade pernambucana, tanto no setor agrícola como no do comércio".

FRAUDE | A partir das cartas enviadas para El-Rei no período delimitado pela pesquisa, o último caso de faltas administrativas envolveu o questionamento dos inspetores eleitos e deu-se em 1766. "Segundo conta o governador Luís José da Cunha Grã Ataíde e Melo, Conde de Polovide, chegou a Pernambuco João Marcos de Sá Barreto para substituir Bernardo Coelho da Gama e Casco. Por ser o novo ouvidor inexperiente e pouco versado em leis, foi aconselhado a tomar por assessor o advogado José Inácio da Cunha, não pensando bem a gravidade da matéria", relata a dissertação.

A gestão de ambos à frente da agência foi marcada, de acordo com carta do governador de Pernambuco, não apenas por injustiças nos julgamentos a que tiveram acesso, como os usaram para ganhar mais dinheiro, despachando a favor de quem desse mais". E mais: o dirigente da capitania aponta que o papel do ouvidor nomeado foi o de "testa de ferro" de Cunha. Como outros personagens que a história do Brasil coleciona até os dias de hoje, os crimes atribuídos a Cunha envolvem ainda fraudes praticadas em outras eleições, a fim de favorecer seu primo João da Costa Monteiro Júnior. "Nos tempos de hoje, poderíamos classificar o que aconteceu naquele ano como tráfico de influência e peculato", sintetiza o autor da dissertação.

 

Data da última modificação: 13/07/2017, 16:17