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Boletim Frente Brasileira de Informações denunciou repressão e crimes durante a ditadura militar

Editado no exterior, informativo foi fundado pelo ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes de Alencar durante período de exílio na Argélia

Por Anderson Lima 

Com sua atuação firme na denúncia da repressão e dos crimes cometidos pelos agentes do Estado durante o período mais sombrio da ditadura militar brasileira, o boletim Frente Brasileira de Informações (FBI), fundado pelo ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes de Alencar durante seu exílio na Argélia, tornou-se importante elemento de mobilização e repúdio das atrocidades cometidas no Brasil no debate internacional. Essa é a conclusão obtida pela historiadora Greyce Falcão do Nascimento na tese de doutorado “A Resistência no Exílio: Miguel Arraes e o boletim Frente Brasileira de Informações (1969-1973)”. O trabalho, orientado pela professora Isabel Cristina Martins Guillen, foi defendido, em 2021, no Programa de Pós-Graduação em História, Campus Recife da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O estudo teve o objetivo de analisar a situação dos brasileiros obrigados a deixar o País por conta do regime ditatorial, período no qual essas pessoas editaram o FBI. Procurou ainda discutir a existência do informativo como forma de luta e de enfrentamento dos exilados, bem como a trajetória desenvolvida pelo impresso, da produção à repercussão. “O objetivo do Frente era, sobretudo, de trazer notícias então censuradas no Brasil, informando à comunidade internacional aquilo que não podia ser publicado na grande imprensa nacional. Principalmente, as denúncias de violação aos direitos humanos”, diz Greyce. Mais que isso, a imprensa produzida no exílio também permitiu que os exilados, longe de suas famílias e amigos, pudessem participar de uma organização coletiva que reforçava vínculos – ideológicos ou afetivos.

Possibilitou ainda a troca de conhecimentos e experiências e a ampliação de horizontes políticos e culturais. “Informar e discutir sobre o que acontecia no Brasil era uma forma de estar ligado ao País, de refletir sobre os acontecimentos políticos e de planejar ações que pudessem, de alguma forma, transformar o cenário ditatorial que colocava o País sob um intenso clima de censura e de propaganda positiva do governo”, analisa a pesquisadora.

“A ditadura não conseguiu calar essas pessoas, que era o maior objetivo do exílio”, avalia Greyce. “Eles fizeram um excelente trabalho divulgando o que estava acontecendo no Brasil por meio da publicação das cartas, das denúncias de tortura nas prisões, greves de fome, listas de torturadores e desaparecidos. Inclusive, teve uma repercussão nacional e internacional, pois, mesmo com a censura, alguns jornais publicavam notas a respeito”, completa.

HISTÓRICO – O Frente Brasileira de Informações foi fundado, dirigido e editado inicialmente por Miguel Arraes de Alencar, na própria residência dele, durante o exílio em Argel, capital da Argélia. Os outros fundadores do impresso foram a irmã dele, Maria Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau; Everaldo Norões, sobrinho deles; o padre Almeri Bezerra de Mello; e o ex-deputado Márcio Moreira Alves. O boletim circulou, de 1969 a 1973, tendo sido editado em nove países – Bélgica, Holanda, Inglaterra, Suíça e Chile, entre outros – e em idiomas como inglês, francês, alemão e holandês, além do próprio português. Cada localidade possuía núcleos responsáveis por organizar a produção do boletim, traduzindo textos, incorporando novos materiais e providenciando a distribuição.

“Pessoas que provinham de diferentes correntes ideológicas procuravam interpretar o passado e formular projetos para a política brasileira após a anistia, demonstrando, assim, que a condição de exilado não significou o fim da militância política para aqueles que atuavam na oposição à ditadura”, avalia Greyce Falcão. O material tinha como público-alvo representantes da classe média escolarizada e politizada atuante nos movimentos sociais, sindicalistas, operários, militares, políticos, jornalistas e intelectuais, entre outros trabalhadores. Atingia ainda pessoas que foram para o exílio na condição de parentes que acompanhavam os indivíduos que eram “alvo” do governo.

Graças ao boletim, elas puderam ter acesso a materiais como cartas de pessoas que escreviam em busca de parentes e listas de supostos torturadores – iniciativa pioneira nas publicações alternativas. Em suas páginas, o Frente também discutia questões como desigualdade social, desmatamento na Amazônia e a causa indígena, entre outros temas. A publicação promovia ainda debate entre os diferentes grupos de esquerda e reproduzia artigos da imprensa brasileira e de periódicos clandestinos, servindo para informar e discutir ideias e estratégias de ação.

Segundo explica Greyce, tanto Arraes quanto os demais idealizadores e colaboradores do FBI acreditaram que a população brasileira iria se revoltar com a situação do País ao ter acesso às informações divulgadas pelo boletim. Porém não foi isso o que aconteceu. “Com o passar do tempo, eles perceberam que, diante da problemática interna do País, com o apoio de parte da sociedade, diante de uma intensa censura e repressão a quem tentasse resistir, perceberam que a melhor estratégia de luta seria a ampla divulgação das denúncias de violação dos direitos humanos, num nível que chamasse a atenção da opinião pública internacional”, conta a pesquisadora.

Com isso, os militantes do Frente passaram a fazer articulações com entidades internacionais de direitos humanos, como o Tribunal Bertrand Russel e a Anistia Internacional, de modo a chamar a atenção da opinião pública internacional. O trabalho dos exilados, porém, não era simples. Existiam diversas dificuldades, a exemplo do financiamento, distribuição, tradução do boletim e, sobretudo, captação de informações sobre o que ocorria no Brasil. E como era de se esperar, a intensa movimentação dos exilados chamou a atenção do governo brasileiro. A ponto de a ditadura criar o Centro de Informações do Exterior (Ciex), órgão responsável por vigiar os exilados brasileiros e elaborar constantes relatórios sobre essas pessoas e suas ações no exterior.

Tese faz registro inédito sobre imprensa militante no exílio

A tese de Greyce Falcão do Nascimento é um dos primeiros trabalhos historiográficos dedicados a discutir e compreender o que foi a imprensa militante no exílio. Traz, assim, uma contribuição inédita para a área, uma vez que o Frente e dezenas de outras publicações lançadas no exterior ainda são desconhecidas da comunidade acadêmica. “Apesar do importante papel desempenhado na luta contra a repressão, existe uma escassez de pesquisas sobre os jornais alternativos e clandestinos produzidos no exílio”, explica ela. Até o momento da publicação da tese, somente um trabalho historiográfico tratava diretamente do Frente. Outros apenas faziam menção à existência do boletim. Greyce também constatou a ausência de pesquisas específicas e aprofundadas sobre a trajetória de Miguel Arraes durante o exílio na Argélia.

Ao longo de cinco capítulos, a tese descreve a trajetória de Miguel Arraes de Alencar, do governo de Pernambuco ao exílio na Argélia; relata o surgimento de vários jornais clandestinos, alternativos e no exílio; e fala sobre a formação do Frente Brasileira de Informações, a vigilância do governo ditatorial sobre os integrantes do boletim e os resultados da militância junto às entidades internacionais, entre outros assuntos. Traz ainda os motivos que levaram ao fim do boletim, que circulou até 1973 e foi encerrado devido a divergências entre seus integrantes. “Eram pessoas de lugares diferentes do Brasil, de partidos políticos e pensamentos diferentes. Uns defendiam a via partidária. Outros, a revolução e a luta armada”, explica a pesquisadora, ressaltando que Arraes também estava inserido nessas divergências: “Ele tinha uma pauta e as sucursais dos outros países não queriam segui-la, pois estavam querendo autonomia.”

Em sua pesquisa, Greyce não se limitou aos boletins e à bibliografia que trata sobre o tema. Ela também investigou o acervo que fez parte do exílio de Miguel Arraes – cartas, manuscritos, relatórios de reuniões, documentos de cunho econômico, entre outros – que atualmente integra o acervo do Instituto Miguel Arraes (IMA), bem como documentos do Centro de Informações do Exterior (Ciex) e da Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores (DSI/MRE). Os documentos estão digitalizados e podem ser acessados por meio da página do Arquivo Nacional.

Até o encerramento das atividades, o Frente Brasileira de Informações contou com mais de 60 exemplares, alguns com tiragem de mais de três mil cópias. Graças aos esforços, os militantes atuaram informando a opinião pública internacional e denunciando os crimes e violências cometidos no Brasil pelos agentes do Estado, fazendo com que o boletim se transformasse em uma importante ferramenta de mobilização e repúdio contra a ditadura militar no debate internacional – para alguns, a maior expressão da oposição dos brasileiros fora do País. “Ao construir uma rede internacional de informações e estabelecer comunicação com exilados em outras partes do mundo, o Frente estabelece para nós uma representação de que é possível combater um governo autoritário na perspectiva da informação e da circularidade, rompendo o bloqueio estabelecido pela censura”, conclui Greyce Falcão do Nascimento. O resultado do trabalho está disponível também no formato de livro, cuja versão digital pode ser acessada de forma gratuita na internet.

Mais informações
Programa de Pós-Graduação em História da UFPE
(81) 2126.8292

ppghistoria@ufpe.br

Greyce Falcão do Nascimento
greycefalcao@hotmail.com

Data da última modificação: 09/11/2022, 10:05