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Crítico da cidade funcional, Gaston Bardet foi alijado dos currículos e debates acadêmicos

Trabalho de Juliana Melo recebeu o Prêmio de Melhor Tese da área de Planejamento Urbano e Regional/Demografia da Capes em 2020

Por Renata Reynaldo

O que justifica um estudioso, teórico e prolífico autor de livros e artigos, planos, palestras e conferências sobre urbanismo, na Europa, África e Américas, ativo na segunda metade do século XX, ter tido seu nome apagado na historiografia de sua área por décadas a fio? Foi para responder a essa questão que a doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPE (MDU) Juliana Melo concluiu que a produção intelectual do urbanista moderno francês Gaston Bardet, morto em 1989, foi ofuscada, e, mesmo, combatida, pelo pensamento predominante à época, a vertente funcionalista do urbanismo, que tinha como um dos maiores expoentes, o suíço e famoso Le Corbusier.

Ainda nessa busca por entender a causa da pouca inserção das ideias bardetianas nos círculos de discussão do urbanismo moderno e também nos currículos das escolas de Arquitetura, a autora da tese “Para florescer pessoas: o pensamento urbanístico de Gaston Bardet”, defendida no MDU-UFPE em 2019, terminou por resgatar uma relevante parte do pensamento desse arquiteto que “foi um ‘não conformista’, que acreditou e apostou na capacidade de transformação social do urbanismo”. O trabalho acadêmico, orientado pela professora Virgínia Pontual, recebeu o Prêmio de Melhor Tese da área de Planejamento Urbano e Regional/Demografia, conferido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em 2020. 

Segundo Juliana Melo, a convicção de Bardet sobre a possibilidade e a necessidade de reestruturação da sociedade com vistas à redução das desigualdades “o levou a se envolver nos embates que, se por um lado, demonstraram certo conservadorismo e resistência às mudanças na estrutura familiar, às novas expressões artísticas e à inevitável pré-fabricação arquitetônica, por outro, expressaram sua indignação frente à precarização da vida, à exploração do trabalho e à desumanização das cidades pós-industriais”. Identificado pela autora como um pensador obcecado por contribuir com o campo do urbanismo, Gaston Bardet definiu sua área de atuação como, entre outras tantas conceituações convergentes, uma “síntese de ideologias francesas”.

CRÍTICAS | Crítico à cidade funcional, o urbanista francês “articulou um amplo espectro teórico para convergir ou se contrapor às ideias em voga no urbanismo europeu e americano”, segundo a tese. E essas críticas, para a autora do trabalho acadêmico, podem ter sido incômodas e incisivas, “mas foram fundamentadas na leitura de demais urbanistas, filósofos, geógrafos e pesquisadores sociais, como Sitte, Howard, Hénard, Unwin, de la Blache, Durkheim, entre outros”. Como reflexo desse conhecimento, Bardet proclamava ser “necessário, antes de tudo, embasar o urbanismo sobre a essência do homem”, afirma Juliana. Ela complementa: “O humanismo bardetiano teve bases na moral cristã, na utopia de Morus, na filosofia de Bergson, de Tomás de Aquino e Emanuel Mounier (...) Por isso, colocar o homem como centro do seu pensamento urbanístico significou compreendê-lo como ‘corpo e espírito’, como ‘pessoa’ insubstituível e não objetificável, que deveria ter oportunidades de se desenvolver em todas as potencialidades.”

Arquiteto veio ao Brasil e falou mal da nossa arquitetura moderna

Foi a partir de uma visita ao Brasil, em 1948, que Gaston Bardet começou a pavimentar seu caminho pela América Latina, por onde também passou pela Argentina e México, mais demoradamente, e em breves estadas pelo Uruguai, Peru e Venezuela. Em São Paulo, a convite do diretor da Escola Livre de Sociologia Política (ELSP), Cyro Berlink, e, em Minas Gerais, ministrou um curso intensivo de urbanismo, por sugestão do professor José Geraldo Farias. Na metrópole brasileira, que contava cerca de 2 milhões de habitantes e vivia “uma transformação desordenada da paisagem urbana”, o urbanista francês não gostou do que viu.

Segundo a autora da pesquisa, Bardet criticou o excesso de verticalização e a falta de relação com a paisagem pré-existente, declarando: “De pouco serve rasgar novas avenidas, no intuito de facilitar o trânsito de veículos, se, ao mesmo tempo, essas vias públicas são repletas de imóveis, multiplicando-se a densidade anterior sete, oito vezes [...] Dentro de dez anos o centro da cidade de São Paulo estará definitivamente congestionado.”

POLÊMICA | Já na aula inaugural do curso em Belo Horizonte, segundo relata a tese, o professor convidado “não hesitou em expor sua opinião com duras críticas ao urbanismo funcionalista, às ideias difundidas por Le Corbusier e a seu projeto do Ministério de Educação e Saúde (MES)”, talvez sem se dar conta de que a obra tinha uma relação especial com os arquitetos, políticos e intelectuais locais – o ministro Gustavo Capanema, diretamente ligado à realização do edifício, era mineiro, assim como Juscelino Kubitschek, realizador do Conjunto da Pampulha em sua gestão como prefeito de Belo Horizonte (1940-1945) e entusiasta do modernismo arquitetônico.

Resultado: após os jornais relatarem que as declarações causaram desconforto a muitas autoridades presentes, Bardet “esclareceu” que as críticas ao edifício não foram direcionadas aos brasileiros, visto que, internacionalmente, o arquiteto suíço reivindicara a autoria do projeto. E, descreve Juliana Melo: “Não suficiente, comparou o prestígio de Le Corbusier ao da Coca-cola: ‘muitos o seguem apenas pela fama. Existe em razão da publicidade e não do seu valor’.” Obstinado em não amenizar a situação, declarou que não havia nada de original na arquitetura brasileira, concebida segundo preceitos internacionais, tendo ainda ironizado a utilização dos azulejos como tentativa de abrasileirar o formalismo”. Achando pouco, muitos anos depois, Bardet ainda declarou que Brasília era a “obra-prima mundial em termos de megalomania e absurdo”.

Mais informações
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE (MDU)

ppg.mdu@ufpe.br

Juliana Melo
melo.arquiteta@gmail.com

Data da última modificação: 22/04/2021, 14:16